Rimas

Conto

Do que restou dos relatos de Minkabh, escriba do grande Rei.

Sucedeu que, finalmente, chegamos à entrada da cova enquanto nosso último camelo sucumbia. Depois da tempestade de areia, havíamos perdido os guardas, os baús, a maior parte da comida. Apenas eu e meu Senhor restamos, pela graça de Rá ou para seu desgosto. Foi só ali, na bocarra da caverna, que o Rei me confidenciou o motivo de tão árdua jornada. Talvez ele soubesse que até mesmo eu, seu mais fiel súdito, recusaria a empreitada se soubesse de antemão os seus motivos.

Adentramos a cavidade com passos lânguidos.

Depois de vagar no escuro pelo que pareceu horas, senti de repente uma presença fétida, uma náusea permeada de culpa e nojo e vi, sob a luz de nossas tochas, escaravelhos fervilhando nas paredes. Então, naquela escuridão fragmentada de mil carapaças, tive vislumbres de uma face amarelo-enxofre que ostentava duas jóias de um vermelho infinito. Na cabeça hedionda, vi um diadema de chifres. A criatura começou a falar com voz de lâmina raspando ossos.

Quem vem procurar o negrume

Em deserto de noite sem luar?

Já posso sentir seu perfume:

A vaidade que vieste barganhar

Um fio gelado percorreu minha coluna até cravar-se na nuca e me senti exposto até a medula. Percebi em meu Senhor, só porque o conhecia tão bem, um ínfimo hesitar: anos preparando-se para esse encontro e, agora, em face do desafio, o arrependimento o tenta.

Sua voz, porém, soou sólida. “​Sou aquele que chamam ‘O Grande’, e assim, de fato, sou. Onde toca o olhar do Sol ali reino eu. Sobre todo homem, animal e planta. Sobre toda planície, vale e rio. Meu é o poder sobre toda carne. Meu é o domínio sobre toda terra.”

Um farfalhar de asas respondeu.

Com tal soberba vens me ver?

Mais um homem com tudo, menos paz!

O que um “Rei-Sol” poderia oferecer

A um senhor de terras abissais?

Meu Rei fazia o possível para não demonstrar temor frente à inconcebível criatura.

“Recorro a ti porque és o Rimador, e bem sei que o destino não passa de um tear de rimas, um fio trançado agora que ressurge mais adiante, as reiterações que nos aprisionam nos mesmos erros, as decisões de outrora que voltam para cobrar seu quinhão, nossos últimos versos em vida para sempre atados aos primeiros.”

Quantas vezes ensaiara esse discurso?

“Mas o tempo a tudo sopra como areia fina, e pouco me resta antes da última ida. Que será de meu legado? Que será de meu povo?”

Uma paixão inflamava seus olhos. A mesma paixão com que governava, a flama que me fazia amá-lo.

“Aí está. Peço-te que meu reino dure para sempre. Que minhas obras assombrem os poderosos pelos séculos. E que meus feitos sejam lembrados de novo e de novo, como rimas nas infinitas estrofes por vir. Ouro, prata, camelos, virgens… Tudo é meu para dar, se fizeres de meu reinado uma rocha imune contra o tempo. Aceitas a barganha?”

Há! Que Anúbis me açoite!

A um demônio o riso é rarefeito

Mas ver o Rei Sol implorando para a Noite?

Ah, nada seria mais perfeito!

O que vi a seguir atribulou meu coração ainda mais que a presença imunda: meu Rei, o chamado Grande, ponderou por um brevíssimo instante e então, lentamente, dobrou os joelhos e levou a testa ao chão, apequenando-se. Ah, antes se curvassem os pilares da Terra! Antes dobrassem sobre mim as colunas do templo!

“Tens-me em genuflexão.”

Ora, mas que perfeito ensejo:

A humilhação de um Rei para sorver!

Nada resta se não ceder o seu desejo

Que mais um Rimador poderia ter?

Com essas palavras hereges, as esferas vermelhas se apagaram. Sem um traço de medo em sua fronte, meu Senhor se levantou e sinalizou para que deixássemos aquele lugar. De minha humilde posição, sentia o coração mais pesaroso que aliviado.

Quando a luz do dia já se pronunciava na saída à nossa frente, senti um sussurro quente e podre penetrar nos meus ouvidos e nos meus ouvidos somente.

Disse-me a voz esmegmática:

Sim, lembrarão teu nome, reizinho

Este será seu derradeiro legado

Não em cerimônias regadas a vinho

Mas em lembrança de ruína e enfado

Nem sequer teu rosto em moeda

Só uma rima, quem sabe um soneto

Teu maior feito, tua queda

Será teu eterno epíteto

Naquele instante, como uma flecha na têmpora, compreendi o ardil demoníaco. Esta seria minha maldição para carregar: saber, de mãos atadas, que o legado de meu senhor, a despeito de tudo que sacrificara, seria nada mais que pó.

Até o fim dos meus dias esse conhecimento me torturaria. Com grandes dores me abstive de narrar esses acontecimentos, que confio apenas a esta página para sempre subtraída de meus relatos. O maldito saber de que assim sobreviverá pelos séculos a única lembrança do Grande Rei dos Reis: apenas numa rima.

Ainda hoje, em noites sem lua, sonho com estátuas dormentes sob areia infindável e choro ao ver a feição de escárnio e frieza esculpida em pedra arruinada, tão diferente do meu senhor, meu Sol, meu Ozymandias.

E nessas madrugadas, quando acordo, ainda posso ouvir gargalhadas guturais ecoando ao longe.

Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante

Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,

Acham-se no deserto. E jáz, pouco distante,

Afundando na areia, um rosto já quebrado,

de lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante

Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia

Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,

À mão que as imitava e ao peito que as nutria

No pedestal estas palavras notareis:

“Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis:

Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”

Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.

Ozymandias, de P.B. Shelley, 1818.

Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

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